quinta-feira, 17 de julho de 2014

Samsara - Reflexão Guiada pela Roda da Vida


Samsara é um documentário de 99 minutos lançado em 2011 no “Toronto International Film Festival”, dirigido por Ron Fricke e produzido por Mark Magidson. Filmado em um período de cinco anos, em 25 países, registrado analogicamente em película de 70mm, o que garantiu extrema qualidade de imagem, tem o diferencial da linguagem não-verbal recebendo somente uma trilha sonora magnifica como áudio.
Ron Fricke dirigiu, fotografou, coeditou e co-escreveu Samsara, conhecido por seu trabalho meticuloso como diretor fotográfico, o cineasta americano trabalhou como diretor de fotografia em partes do filme “Star Wars Episódio III: A Vingança dos Sith”. Também dirigiu outros filmes que seguem a mesma linha de produção de arte não-verbal de Samsara, sendo Baraka (1992), Chronos (1985) e  Koyaanisqatsi (1982).
O filme é uma viagem pela vastidão do planeta, guiada por uma trilha sonora espetacular e com uma preocupação especial entre a sequência de imagens que retratam culturas, locais inóspitos, paisagens naturais, complexos industriais, lugares de desastre, locais religiosos e sagrados, momentos significativos e raros, imagens que retratam o planeta, o ser humano e os mundos entrelaçados dessa Terra.
O título do filme “Samsara” é uma palavra sânscrita que significa "a roda da vida sempre girando", também descrito como o “fluxo incessante de renascimentos através dos mundos”, popular nas filosofias religiosas da Índia, como o hinduísmo e budismo. Utilizada como ponto de partida para os cineastas em busca da indescritível interconexão que rege nossas vidas, a palavra encaixa-se perfeitamente entre a trilha sonora propicia para a meditação e as imagens bem capturadas, conduzindo o espectador a uma reflexão sobre a vida.
A reflexão guiada nos mostra que o mundo não é tão pequeno quanto imaginamos enganosamente, que existem variadas culturas, raças e etnias, principalmente culturas religiosas, lugares magníficos conservados ou devastados que não somos capazes nem de imaginar. Lugares tais que nos fazem indagar: esse lugar existe? Nos mostra a diferença física e cultural presente nesse povo de vida tão efêmera, nós, os humanos. Focando principalmente nas culturas não tão presentes na mídia mundial fazendo com que acordemos e pensamos que não conhecíamos esse mundo, esse outro lado do mundo.
Algumas cenas foram filmadas em complexos industriais, focando no superconsumo existente atualmente, acabaram sendo chocantes devido ao desconhecimento que nós geralmente temos dos meios de produção. Por exemplo, o da criação de frangos e também o da fabricação de ferros de passar roupas.
A trilha sonora do filme é extremamente cuidadosa e bem feita, guiando as imagens virtuais e as mentais, propondo o relaxamento físico necessário para a meditação e auxiliando na reflexão que o filme propõe. Às vezes leve, às vezes intensa, a trilha acompanha as cenas de acordo com seu teor, tornando a ausência da comunicação verbal imperceptível.

Samsara deveria ser assistido várias vezes, ao longo da vida, para que fosse interpretado diversas vezes e com amadurecimento e percepção diferentes. O documentário faz seu papel fielmente, girando entre países e várias cidades, demonstra a roda da vida, a roda do mundo, passando por conceitos da sociedade e a diversidade cultural. 

19

Passo a pomada na tatuagem e enrolo o filme plástico pela cintura, penso quem será o primeiro ao me abraçar que encostará exatamente no local da tatuagem feita recentemente.  19 anos, mais de 19 horas viajando. Estresse com a assistência técnica do celular comprado na semana passada. Inacreditável. “Moça, infelizmente o problema é com a placa, temos que aguardar a peça chegar.” Parabéns pra você.              
Termino o livro, que será autografado no próximo mês, antes de entrar no segundo ônibus. Sempre um livro no dia 16, sempre junto comigo. 3 cidades, 2 dias, 5 parabéns recebidos pessoalmente. Ninguém ligou, os créditos acabaram e o número do outro estado não recebeu nenhuma chamada. Sem internet, sem celular, sem gente. Nesta data querida. 
Divagações sobre como esse dia só importa se as pessoas a sua volta sabem e se importam com ele. A tatuagem incomoda. Presente adiantado. Coloco as roupas na máquina, no varal. O sol saiu. Analiso as outras mesas, cumprimentos: “Oi, como vai? Quanto tempo!”.  O importante é julgar. Nostalgia sobre o último dia no restaurante, email de aprovada no vestibular, prova da USP nos próximos dias. Saquê com morango. O shoyo cai e se espalha preto no prato branco. “Faz qual curso? Letras?” e o semblante de descaso que todos apresentam ao ouvirem. Aparentemente não é bom o suficiente. Sushi, hot roll, philádelfia, sashimi. Muitas felicidades. 
Todos os sonhos do mundo cabem em mim. 6 meses de mudança, sem falta da cidade pequena. Casa, sem internet, o técnico vem amanha. Sono, sonha, acorda. Acabou. A tatuagem ainda dói, marcada para sempre no corpo mutável, efêmero. Muitos anos de vida. 

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Todo Dia é Dia de Poesia

“O amor bate na aorta”

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeiras
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender…


Carlos Drummond de Andrade

sábado, 28 de junho de 2014

Das Coisas Que Não Saem da Cabeça

       Acho estranho quem não gosta de música, é algo tão presente nas nossas vidas. Sou do tipo que escuta a mesma música, repetidas vezes, até enjoar. Selecionei para o post as que resolveram habitar a minha mente ultimamente para que elas possam habitar outras mentes também. Gosto principalmente das letras dessas que escolhi. Ouça e deixe-se viciar! 

Zimbra - Viva 
Encontrei essa música no começo do ano e simplesmente não paro de escutá-la. Amei a letra e do nada me pego pensando em alguns versos da música. Adoro a capa do álbum e o nome da banda! Zimbra é uma banda meio desconhecida e tem uma pegada de reggae, escutei algumas músicas deles mas a que me conquistou foi essa. "Eu só queria um pouco mais de tempo pra me acostumar, eu gostaria de recomeçar aquilo tudo que eu te falei antes de viajar..." 

Vivendo do Ócio - Nostalgia 
Indie brasuca, Vivendo do Ócio é muito hispter gente! haha! Tirando a brincadeirinha, fiquei fascinada com a melodia, a letra e o jeito que eles cantam Nostalgia. A parte que não sai da minha mente por nada é: "Eu só queria passar um tempo lá em casa, me deu saudade da Bahia." Ah a Bahia, como não amar?

Tiago Iorc - Morena
Tiago Iorc cantando Los Hermanos acústico é amor demais, lindo demais. Ele poderia cantar para mim todos os dias que eu não me cansaria, principalmente depois que fui em seu show. "Tá tudo bem, sereno é quem tem, a paz de estar em par com Deus"

Dani Black - Linha Tênue 
Não sei nem o que comentar sobre essa letra. Somente. A Maria Gadú gravou essa música, o que a tornou conhecida, porém prefiro a versão do seu compositor. "Quando o desprezo a gente muito preza, na vera o que despreza é o que se dá valor."

  Huaska - Chega de Saudade
Sambinha bom versão rock, Huaska acertou na adaptação da música do Vinícius de Moraes, a combinação ficou super agradável, perfeita! A banda tem também versões de outros sambas clássicos, ótimas por sinal.  "Dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de abraços, apertados assim, colados assim..."  Pura poesia!

Skank e Nando Reis - Resposta 
Os mineiros do Skank sozinhos já me fisgam,  juntos com o Nando então é para não sair da playlist nunca mais. "Ainda lembro o que eu estava lendo, só pra saber o que você achou dos versos que eu fiz, eu ainda espero resposta."


Soulstripper - Bilhetinho Azul
Versão da música do Cazuza e do Frejat, perfeita, perfeita, perfeita! Amor demais com essa banda Sousltripper! "Como pode alguém ser tão demente, porra louca, inconsequente e ainda amar? Ver o amor com um abraço curto pra não sufocar."

Caetano Velozo - Sozinho
E por último uma das mais importantes! Quem nunca ouviu essa música não é brasileiro. Caetano esse mestre! Clássica e uma das minhas preferidas. Habita a minha mente, tem uma casa de 3 quartos no canto direito do meu cérebro, porém vive sozinha, coitada. "Eu tenho meus desejos e planos, secretos, só abro pra você mais ninguém..."

"E queria sempre achar explicação pro que eu sentia"

            Faz mais de um ano que eu não escrevo no blog, que eu não escrevo crônicas, mais de um ano que eu não escrevo um conto. Parei pra refletir que o conceito de Deixar a Janela Aberta é como uma filosofia de vida para mim, deixar algo aberto para absorver o mundo, deixar a mente aberta acima de tudo. As vezes eu consigo, as vezes não. Tanta coisa mudou nesse ano e a escrita ficou de lado, ao lado do meu medo terrível de escrever e saber que nunca será o suficiente, de começar e não parar. Sou realmente muito medrosa. Mas tento acreditar cegamente que sou corajosa, caso contrário ficarei totalmente paralisada, o que não é muito difícil para mim. 
          O fato é que muita coisa mudou em um ano. Eu mudei muito em um ano. 2013 foi um ano de aprendizado, resumidamente. O mais assustador é que eu percebia a mudança acontecendo, eu percebia o meu amadurecimento e isso me assustava avassaladoramente. Eu perdi o chão em 2013, o chão que eu criei nos meus planos ilusórios, o futuro que eu não imaginava de outra forma. Perdi um ano de faculdade. Ganhei várias escolhas a mais. Eu acredito que Deus sabe o que faz, que o universo gira de acordo com nossas escolhas, nos guiando, mas todos os caminhos levarão ao mesmo lugar. Tento me agarrar a essa crença, uma das poucas que eu ainda defendo dos meus próprios questionamentos. A propósito, não há um dia sequer que eu não questione minhas escolhas, que eu não pense no futuro e na minha total falta de perspectiva sobre ele. Não faço ideia do que me aguarda e isso é desesperador. 
           Não sei quando me tornei tão crítica com minhas leituras, quando perdi a graça em certos livros, quando comecei a odiar teoria da literatura e principalmente quando perdi totalmente a fé e a paixão no jornalismo. Não quero escrever notícias inúteis somente para que isso seja vendável, não quero simplesmente passar a notícia como um robô passa uma informação repetida. Eu quero que o jornalismo seja reflexivo, que o texto e a notícia se unam para levar o leitor a um pensamento próprio, um questionamento, uma ação. E eu sei que eu quero uma utopia. Então desisti, e depois de desistir comecei a perceber que não faz diferença, que eu não quero escrever todos os dias, ser julgada pelo meu texto todos os dias. Eu quero escrever porque escrever é libertador. Eu quero escrever para colocar as ideias em ordem, vomitar os sentimentos e reflexões que já não cabem mais em mim. Eu quero escrever porque escrever é minha forma de desenhar o mundo. Simples. Eu quero escrever por prazer, satisfação e empolgação. 
         Demorou um tempo pra que isso se fixasse na minha mente, aliás nem sei se realmente se fixou completamente. Demorou para que a pergunta "mas não era isso que você queria?" deixasse de me abalar por dias. Demorou para perceber que eu não precisava provar nada pra ninguém. "Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira" parei de mentir pra mim sobre essas escolhas e sobre jornalismo. Parei e isso sim foi libertador. Eu preciso superar agora as barreiras que Letras impõe em mim. Preciso entender que quando for analisar um texto ou um livro isso nada tem a ver com a minha relação com a escrita. Não posso deixar isso me paralisar, me amedrontar mais ainda. 
          Novamente não sei quando me tornei tão crítica ao ler, quando criei preconceitos literários e quando deixei de me empolgar com a possibilidade de conhecer autores. Eu não quero ler com a obrigação de resenhar tudo, mesmo que mentalmente, essa nunca foi a minha intenção com a leitura. Não vejo soluções ainda para certas questões como essa. Mas verei, em breve. 
        Tenho tantas ideias e não as escrevo e realizo. Isso é um crime para a minha sanidade mental. Eu que já não me considero muito normal não posso me dar a esse luxo de sufocar a inspiração. Quero mandar um foda-se pra opinião alheia, um foda-se bem grande. 
        Quando me lembro do Deixe a Janela Aberta me esqueço do Dream a litle  dream with me?, o outro blog abandonado. Eu não posso esquecer meus sonhos e só observar a vida pela janela ouvindo minha música preferia e fumando um cigarro. Não que eu não faça muito isso, porém não posso continuar esquecendo meus sonhos. Me pergunto sempre quantos pequenos sonhos e desejos eu deixei de fazer em 2014 por falta de companhia. Quantos shows  deixei de ir, quantos lugares deixei de conhecer, restaurantes e bares que quis ir, e não fui por estar sozinha. Eu mesma mato esses pequenos sonhos, todos os dias, por omissão. O blog nunca foi um sonho, mas sim uma válvula de escape. Justamente o que mais preciso, no momento eu só precisava começar a escrever e postar em algum lugar, colocar tudo pra fora, mesmo que seja desconexo e ligeiramente incoerente. Então o fiz. 
          

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Mais Do Que Um Mochilão


Há dois meses e meio, minha tia deixou tudo e foi fazer uma viagem. Deixou uma casa enorme entulhada de móveis e roupas por uma mochila com seletos trajes de frio e várias meias. Deixou uma coleção de filmes (mais de 700), deixou um grupo de amigos, deixou uma parte da família que ainda permanece na cidade natal, deixou a rotina. Deixou um diploma de enfermagem, com pós graduação em oncologia, guardado e o emprego também. Deixou um período da vida para trás. Um período que a família toda estava com ela, cada um a seu modo. Deixou, na verdade, todos mais preocupados ainda. Deixou o idioma, deixou o conforto, deixou a estabilidade. Deixou de lado a covardia que muitos têm e embarcou de cabeça na viagem que sempre sonhou.
Com base no que relatei, você pode me dizer: “Normal, ela foi viajar, e daí?”
E daí que ela ainda não voltou. E não vai voltar tão cedo. E enquanto isso, o coração da família ta viajando com ela, aprendendo com ela, sentindo saudade dela. Normal, porém não menos especial.
Porque a cada cidade nova que ela visita, nos países da America do Sul, a gente visita com ela. Já fui ao Chile e a parques incríveis. Tive uma aventura em uma montanha que não sabia como descer. Tirei fotos com a paisagem maravilhosa ao fundo. Quase morri de frio! Estou em Bariloche desvendando a cidade e também parte da Patagônia...

Sem dúvida estou vivendo com ela tudo isso. Aliás, consigo ver como agora ela está realmente vivendo. No sentido pleno que isso envolve. Acho que ela nunca viveu tanto como está vivendo agora. E o orgulho que tenho disso é tão grande que não consigo expressar de outra forma a não ser tentar viver um pouco disso por meio dela.
Pois ao aprender espanhol e fazer a quantidade de amigos que ela já fez, eu vejo o quão somos pequenos diante desse “mundo, mundo, vasto mundo” e ao mesmo tempo o quanto somos importantes, e capazes de perseguir tudo o que sonhamos sem nos importarmos com o tempo que isso vai durar ou demorar. 
Sobre essa importância, eu penso no meu tio, que largou tudo para ir junto com a esposa nessa viagem que ambos planejaram. Sobre como ele é tão parte da família que não os imagino um sem o outro. De certa forma esse casal me fez pensar em como eu espero que o companheirismo seja na minha vida. Assim desse jeito, o jeito de superar tudo que desgasta um casamento e embarcar no relacionamento. De superar tanta coisa e permanecer assim, unido. "Ainda quero alguém me faça querer viajar o mundo sem destino, de mãos dadas e com apenas uma câmera pendurada no pescoço. Quero alguém que me faça ser assim, mais simples.” Porque esses dois são o exemplo vivo de que nem tudo é idealização, e que a possibilidade desse trecho do texto da Bruna Vieira se tornar real é dependente das nossas escolhas.

E eles escolheram viver um momento, que sim, não é menos complicado que a nossa vida normal. Escolheram viver a saudade e enfrentar dificuldades, mas escolheram acima de tudo ir atrás da felicidade que almejaram.

Por isso, quando a saudade bater tão forte que nos fizer chorar, e se não pudermos nos abraçar em nossos respectivos aniversários, tentarei me lembrar de tudo que escrevi, olharei o olhar de vocês nas fotos em lugares lindos e pensarei que o senhor gauche Carlos Drummond de Andrade tinha razão pois “mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.”
E sim, vocês deixaram saudade, deixaram gente competindo por atenção em cada email que enviam e em cada ligação por skype que temos. Deixaram uma família rezando todos os dias por vocês e para que tudo corra bem na viagem. Deixaram muita coisa, mas ganharam muito mais. 
Além de tudo eles resolveram compartilhar a viagem, as dicas, as fotos, não só com a família mas com qualquer um disposto a ler uma ótima história que ainda está sendo escrita, no blog: http://diariodeumcasalmochileiro.blogspot.com.br/ . 

quinta-feira, 28 de março de 2013

Crônica do Dia e a Influência Americana



Voracidade
Estávamos num cinema nos Estados Unidos. Na nossa frente sentou-se um americano imenso decidido a não passar fome antes do filme acabar. Trouxera do saguão um balde — literalmente um balde — de pipocas, sobre as quais eles derramam um líquido amarelo que pode até ser manteiga, e um pacote de M&M, uma espécie de pastilha envolta em chocolate. Intercalava pipocas, pastilhas de chocolate e goles de sua small Coke, que era gigantesca, e parecia feliz. Fiquei pensando em como tudo naquela sociedade é feito para saciar apetites infantis, que se caracterizam por serem simples mas vorazes. As nossas poltronas eram ótimas, a projeçáo do filme era perfeita, o filme era um exemplar impecável de engenhosidade técnica e agradável imbecilidade. Essa competência é o melhor subproduto da voracidade americana por prazeres simples. O que atrai nos Estados Unidos é justamente a oportunidade de sermos infantis sem parecermos débeis mentais, ou pelo menos sem destoarmos da mentalidade à nossa volta, e de termos ao nosso alcance a realização de todos os nossos sonhos de criança, quando ninguém tinha senso crítico ou remorso.
Mas o infantilismo dominante tem seu lado assustador. Nenhum carro de polícia ou de socorro do mundo é tão espalhafatoso quanto Os americanos. Numa sociedade de brinquedos caros, quanto mais luzes e sirenas mais divertido, mas o espalhafato também parece criar uma necessidade infantil de catástrofes cada vez maiores. O caminho natural do apetite sem restrições é para o caldeirão de pipocas, para a Mega Coke e para a chacina. Existe realização infantil mais atraente do que poder entrar numa loja e comprar não um brinquedo igualzinho a uma arma de verdade mas a própria arma? Nos Estados Unidos pode. De vez em quando uma daquelas crianças grandes resolve sair matando todo mundo, como no cinema, mas a maioria dos que compram as armas e as munições só quer ter os brinquedos em casa.
Vivemos nas bordas dessa voracidade ao mesmo tempo ingénua e terrível, mas ela não parece entrar nas nossas equações económicas ou no cálculo dos nossos interesses.
Somos cada vez mais fascinados e menos críticos diante do grande apetite americano e de um projeto de hegemonia chauvinista e prepotente como sempre, agora camuflado pelos mitos da "globalização". Quando a prudência ensina que se deve olhar os americanos do ponto de vista das pipocas.

                                                   Crônica retirada do livro “A Mesa Voadora” de Luís Fernando Veríssimo. 


             O Senhor das crônicas Luís Fernando Veríssimo escreveu "Voracidade" antes do ano 2001, data em que o livro A Mesa Voadora foi lançado, entretanto como tal crônica permanece atual e poderia ter sido escrita no ano de 2012 inspirada em uma das notícias que chocou o mundo? Apesar da maioria de seus textos serem atemporais, um motivo relevante que torna essa crônica tão atual é que certas coisas não mudaram nada nos EUA em mais de 10 anos. A comida continua a mesma e a população mais obesa do mundo só vê agora o resultado explicito de toda a Junk Food que ingeriram. As armas continuam sendo vendidas como brinquedos e massacres em cinemas e escolas não são ficção.


          No dia 20 de julho de 2012 um fã do vilão Coringa se empolgou com a sessão especial  do filme "Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge"  invadiu o cinema da cidade Aurora no subúrbio de Denver, Colorado, e iniciou um tiroteio. O estudante James Holmes, de 24 anos, comprou legalmente todas as armas que usou e 6.000 cartuchos de munição pela internet. Para os espectadores do filme a cena surreal que presenciaram deixou marcas fortes,  12  mortes e 59 feridos. Apenas 32 km separam o cinema da escola Columbine onde 13 estudantes foram mortos por dois colegas de classe no ano de 1999. A compra de armas de fogo nos Estados Unidos ainda é fácil e psicopatas tem total acesso a isso.


       Porém o apetite voraz dos americanos não é preocupante só pelas armas e brinquedos, seu consumismo exagerado não impõe limites e suas crianças caminham a um estágio de obesidade alarmante. Como lidar com tal influência americana e a cultura presente em nosso país que super valoriza o estrangeiro e tem como inspiração o tal país de primeiro mundo?


      Nossas crianças também estão obesas, todavia nenhuma medida está sendo tomada, educação alimentar deveria se tornar uma disciplina escolar. Outra disciplina obrigatória deveria ser aquela que incentivasse o pensamento crítico e tirasse a maioria da população da alienação causada pelas marcas e pela mídia, porém essa é uma utopia. O documentário "Muito Além do Peso" expõe de forma clara toda a influência e sua consequência. Portanto até onde a saciedade do nosso apetite voraz é compensadora?